Video-instalação com som, exposição de Mafalda Santos e Manuel Mesquita, Espaço Mira, Porto
Mira Técnica apresenta novas obras de Mafalda Santos (Porto, 1980) e Manuel Mesquita (Lisboa, 1977), realizadas em vídeo, a partir de pintura e desenho de Mafalda Santos com som de Garcia da Selva. No dia da inauguração da exposição, Garcia da Selva apresentou em concerto um conjunto de composições que dialogam com as obras em exposição.
Da cosmogonia das imagens
Toda a obra de arte foi sempre encontro e revelação
Eduardo Lourenço, Caderno de Apontamentos (Da Pintura, 2017)
No início era a imagem como tentativa absoluta de projectar o divino e alcançar a auto-consciência. Sabemos que a história, num sentido amplo, se define na relação essencial entre o homem e a técnica como elementos incontornáveis da própria metamorfose permanente da natureza. Espírito e matéria não se dissociam da mesma maneira que a palavra sagrada dos Evangelhos é capaz de «encarnar» o destino todo da experiência humana. Os rituais mágicos inscritos na gruta de Lascaux dialogam eternamente com
as trágicas figuras da Guernica, de Picasso, a invenção do cinema concretiza o sonho mesmo que ficou adormecido numa escultura grega arcaica. A nossa noção de tempo nada é comparada com a evolução cíclica das formas. De alguma maneira, o digital vive já na Pré-história da nossa condição, no interior sensível dos deuses que esculpimos na épica época dos dilúvios.
É este exercício de rememoração que a exposição Mira Técnica, criada por Mafalda Santos e Manuel Mesquita nos propõe, uma genealogia de imagens que invocam a pintura, o vídeo, a fotografia e o
cinema para repensar a nossa relação dialéctica com as categorias do arcaico e do moderno, do analógico e do virtual, do primitivo e do tecnológico. O loop do compasso de espera lembra o ícone de um sol que tanto ilumina o movimento das imagens como, nas sociedades antigas, era objecto de culto religioso e sinónimo de vida para as comunidades agrárias. Veja-se ainda a tela em que corre uma imagem a preto e branco, memória do fim das transmissões televisivas ou do negativo fotográfico, transição entre o abstracto e o figurativo para nos «revelar», à semelhança do texto bíblico, uma imanência autónoma apenas acessível à virtude da interpretação.
Ou ainda a sensação de profundidade espacial em que as imagens aparecem e se dissolvem nas suas múltiplas extensões nessa hipnótica espiral que permite a eterna circulação de uma geometria cujo demiurgo conhecemos através da potência redentora da imaginação. O mesmo é dizer: da vasta compreensão que esta cosmogonia de imagens mostra e oculta à sombra da sua luz aparente.
Joaquim Pedro Marques Pinto , 2017