By José Marmeleira


Memórias Coletivas Cingulares é uma exposição concebida a partir de duas práticas que se entrelaçam na história da arte dos últimos 50 anos: o site-specific e a residência artística. Evoca, portanto, a narrativa de uma estética e de um modo de criação. O site-specific emergiu com o Minimalismo, nos finais dos anos 1960 e no início dos anos 1970, associado a uma experiência da obra determinada pelo contexto espacial e ambiental. Esta alteração de natureza ontológica era motivada por um conjunto de fatores: o continuado questionamento dos suportes tradicionais, a importância do lugar na construção de sentidos, a enfâse na experiência física, sensorial (do corpo); ou a crítica à circulação comercial da arte. Dirigido pelas condições do contexto, o espaço da arte era agora o espaço real. A obra representava mais do que uma epifania visual de um olho isolado do corpo. Era também realidade tangível, combinação de luz, texturas, profundidade, largura, tamanho. Quartos, paredes, ventilação. Era espaço e tempo.
No caso das intervenções de Memórias coletivas singulares – a grande maioria sob a forma de pinturais murais – o site-specific não é pensado apenas em termos espácio-temporais: tem uma ligação clara e poderosa com o quotidiano, sobretudo porque é concebido em e para dois espaços que dificilmente podemos descrever como espaços estritos de arte; toma a cultura – entendida como forma de vida intelectual e material, e corpo das artes – o seu objeto.
É nesse sentido que podemos filiar esta exposição, e os processos que a determinaram, numa tendência que no início dos anos 1990 marcou a arte internacional: referimo-nos a uma produção que, mediante um confronto com a etnografia, emprega o trabalho de campo, a reportagem pessoal e a pesquisa arquivística. Ao longo de uma residência de três meses, os nove artistas não lidaram apenas como a arquitetura do Convívio e do Círculo Arte e Recreio; envolveram-se com a sua história, a sua memória, a sua vida material. Podemos mesmo dizer que as duas associações são para eles o outro, a alteridade. Não que se verifique uma óbvia pretensão etnográfica ou que, em contraponto, um mero envolvimento com formas simples e geométricas. O que os artistas fazem em Memórias coletivas singulares é redescobrir um lugar periférico e único por meio do site-specific, sem uma desmaterialização das obras e um ataque ao prazer visual: as suas intervenções interpelam os sentidos e compõem uma experiência do lugar. E como todas obras de arte, exprimem também singularidades, formas de fazer, universos pessoais, num espaço partilhado com frequentadores, agentes e programadores. Nesse processo, resgatam do esquecimento a memória dos espaços culturais, da cidade e dos indivíduos, e cumprem um dos mais antigos desígnios da arte.
Todos os intervenientes usaram os arquivos do espaço Convívio e do Círculo Arte e Recreio (CAR) e os seus processos de trabalho foram condicionados, se não determinados, pelo quotidiano e as condições materiais dos lugares. Mas é exatamente na relação entre os seus limites, possibilidades e efeitos que Memórias coletivas singulares se revela como um oportuníssimo e entusiasmante contributo para pensarmos o papel público da arte e dos próprios artistas.

Isabel Ribeiro

Nas pinturas de Isabel Ribeiro, feitas ambas a tinta-da-china, assoma um pendor documental que se explicita para quem conhece bem as duas associações ou acompanhou o processo de trabalho. A artista inaugurou com Mafalda Santos a residência e na sua pesquisa deparou com duas realidades distintas: o espaço arquitetónico, com os seus detalhes e funcionalidades, e a relação das associações com a memória e o exercício das atividades. E foi essa experiência que inspirou o seu contributo para o projecto. No espaço Convívio, escolheu uma zona periférica do edifício, longe da sala nobre, e iluminada por uma claraboia, para concretizar “Balança I”. Um corredor encaminha o visitante para a obra, mas o encontro só tem sucesso se alimentado pela curiosidade. É necessário subir umas escadas e olhar à volta, é necessário explorar o edifício, querer conhecê-lo. Esse é o repto de Isabel Ribeiro. Pintou imagens de dossiês, de pastas, de páginas soltas, que descem da claraboia até ao corredor. Depois de as fotografar, juntou-lhes outras, criando uma pintura que se move com o volume e profundidade oferecidas pela arquitetura. Não é possível vê-la de uma vez. Alude à impermanência que ameaça o arquivo do Convívio (e todos os arquivos). “Balança II”, a intervenção no CAR é mais impositiva, pois situa-se na claraboia do espaço central. Um dos motivos do mural não é novo na produção de Isabel Ribeiro (usou-o na exposição coletiva “Entroncamento”, no espaço 211, em Lisboa): trata-se de um haltere, neste caso formado a partir de duas bases de um troféu de um jogo de xadrez. Simboliza o equilíbrio, o esforço, o voluntarismo que são necessários para manter viva uma associação cultural na cidade. Alude não só a história pública da CAR, como à sua vida interna: as duas peças de xadrez (um peão e o rei) desenhadas em cada uma das extremidades traduzem metáforas visuais das forças que intervêm na coletividade. E, como em “Balança I”, a perceção do espectador não cessa de ser interpelada: o estranho haltere, por meio de uma anamorfose, ora esconde, ora revela, uma peça de xadrez. Num equilíbrio constante.

Mafalda Santos

Mafalda Santos recolheu e analisou informação contida em álbuns, atas, relatório e dossiês de imprensa, e com esse material produziu dois trabalhos que conciliam o ornamento com o testemunho e o conhecimento da história. Trata-se de uma abordagem que tem caracterizado o seu fazer, como atestam as participações nas colectivas “O Dia Pela Noite”, no bar Lux (em Lisboa) e “Ceci n’est pás une retrospective.: Wc Container + In Transit (1999-2009)”, no Porto e comissariada por Paulo Mendes. Por meio da cor, de um cuidado particular com a composição pictórica e de uma relação objetiva entre a informação textual e as cores (apresentadas em lombadas) a artista tem vindo a reconstituir a passagem de tempo no(s) espaço(s), ao inscrever nas paredes (e noutros suportes) a vida passada dos lugares. Trata-se de um combate discreto, quase lúdico, no qual se intui a consciência de uma responsabilidade social, contra o esquecimento. No Convívio, Mafalda Santos escolheu a biblioteca, lugar de óbvia significância histórica e cultural, enquanto objeto da sua intervenção. Depois de reunida a informação dos eventos, diferenciou-os mediante a cor e agrupou-os sob categorias diferentes (cinema, música, literatura, artes plásticas, excursões, missas, homenagens e outras cerimónias de caracter solene como a inauguração da primeira TV a cores), conservando o estilo de escrita usado para descrever os eventos. Este escavar que, no pensamento benjaminiano, é lembrar, estende-se ao CAR. Aqui a artista debruça-se sobre os acontecimentos musicais, evocando a atividade dos Ritmo Louco e dispõe as lombadas sobre a parede. O fato de se localizarem numa zona alta, próxima do teto, acentua a ideia de ritmo, de invasão do espaço, mas estranhamente não dispõem de qualquer informação textual. Perante a dificuldade em coligir os dados (os nomes dos protagonistas e dos principais projectos), a artista optou por não completar a sua “régua cronológica”. O trabalho ficou assim incompleto mas acabado, integrando as contingências, as contrariedades que a artista enfrentou. E por consequência, a relação das pessoas com a memória coletiva.

João Marçal

Os trabalhos de João Marçal têm uma inspiração comum: a música. Os processos, no entanto, distinguem-se. No Convívio, o artista interveio diretamente sobre um elemento particular da arquitetura: uma escada que o progressivo afunilamento das paredes até ao teto vai tornando cada vez mais esguia. Começou por colocar um espelho que, ao duplicar o espaço, interpela a perceção e a experiência física do espectador; inventou portanto outra imagem, procedimento utilizado em 2005 no Mad Woman In The Attic, no Porto. Mas, desta vez, a pintura mural que integra a intervenção não promete qualquer estabilidade. Sob a forma de linhas ondulantes e coloridas, reminiscentes da pop e da op arte (pensamos em Frank Stella, Michael Kidner ou Bridget Riley) bem como do psicadelismo, suscita movimento, ação ou performatividade; “desenha” ondas sonoras que invadem e marcam o espaço, como se libertas de um concerto de jazz. Já a intervenção no CAR desvela uma relação mais concreta com o quotidiano. Estimulado pelo ambiente das aulas de música que aí decorrem, João Marçal elegeu a representação gráfica dos sons como material da sua proposta. De início idealizadas para a produção de um CD (do alter-ego do artista, Marçal dos Campos), acabaram transferidas para as paredes do corredor que encaminha o visitante na direção da sala. São formas elegantes, de duas cores, signos de um de processo de aprendizagem, e são também imagens que associamos a uma prática cultural, a uma escrita. Entre as notas musicais e linhas paralelas, descobre-se, entretanto, a palavra “Ritmo”. Retirada, por meio de uma reprodução fotográfica, da t-shirt de um jogador da equipa de ténis de mesa Ritmo Louco, parece um dado pouco relevante até percebermos que os Ritmo Louco foram também a banda musical que em 1939 iniciou a história do CAR. Confundem-se assim diferentes temporalidades e narrativas: passado e presente, lugar e práticas musicais, história e cultura. O que as liga? A palavra ritmo (ou batida ou cadência) que no espaço Convívio se traduz traduzida numa expressão visual.

José Almeida Pereira

Imagens em movimento, pintura, cinema. História e experiência. É à volta destes conceitos que os murais de José Almeida Pereira produzem significação. Não é a primeira que vez que este artista pinta sobre paredes e em espaços públicos. Ou utiliza a técnica do stencil ou descontextualiza, ao ponto da distorção visual, obras de mestres da pintura ocidental (Velázquez, Rembrandt). Mas em Memórias Coletivas Singulares tais procedimentos, embora de modos distintos, articulam-se intimamente com a dimensão social, cultural e histórica dos espaços associativos. A condição de site-specific constrói-se numa interação constante entre a soberania do artista (com a sua memória, ferramentas, ideias) e determinados signos de uma prática cultural.

Em “Ritmo Louco”, José Almeida Pereira recorreu, como João Marçal ou Isabel Ribeiro, ao arquivo do CAR. Durante a residência, descobriu a importância de Swing Time (1936), obra do cinema musical assinada por George Stevens, na história da associação. A projeção deste filme numa sala local terá inspirado um grupo de espectadores a fundar a banda dos Ritmo Louco, e mais tarde, o próprio CAR que nasceria assim sob a égide das artes populares: o musical, a comédia, o jazz. A intervenção do artista pauta-se por uma discrição e subtileza formal. No corredor principal reproduziu pequenas silhuetas, sombras numa ação frenética que acompanham quem passa. O stencil oferece às imagens uma urgência fugaz que remete para o filme:

numa das principais sequências, a personagem interpretada por Fred Astaire perde a sua sombra. Esta ganha autonomia, foge ao referente, sem que o protagonista se aperceba, e dança. É um momento que dura apenas um segundo e que José Almeida Pereira representa na parede como uma tautologia. Porque também ele retira referente à imagem que passa a ter uma segunda vida. Do cinema para a superfície da parede. Uma projeção do passado para o presente.

No Convívio, encontramos um recobramento semelhante. José Almeida Pereira copiou “A dança dos aldeões”, de Pieter Paul Rubens (obra de 1635) e reproduziu-a num piso da associação, ajustando a composição a uma das paredes em arco. Acontece que esta não tem a proporção correta, pelo que a imagem se transforma num delírio visual ou, conforme a perspetiva, num inesperado elemento decorativo. Não há uma tela a enquadrar a pintura e a proximidade dos azulejos e de uma pintura emoldurada, preexistente no edifício, acentuam a estranheza da situação. Por outro lado, o efeito sobre a imagem é revelador. Tentamos ver, mas vemos outra coisa: uma reprodução que é uma pintura que é uma imagem. Mas o artista não faz propriamente uma apropriação: convida-nos antes a pensar o modo como a experiência das imagens, condicionada pelas tecnologias de comunicação e reprodução, afeta a nossa memória individual e coletiva da pintura. A este epílogo não falta, contudo, ambiguidade: ao remeter para as atividades da associação (a música, a festa), a proposta de José Almeida Pereira faz colidir uma tradição pictórica da grande cultura com a vida quotidiana da associação. E em simultâneo deixa-nos uma questão inevitável: na sua singularidade, até que ponto não se confunde ela com o contexto arquitetónico?

Jorge Fernandes

Jorge Fernandes organizou a sua produção em torno da música, compondo, com recurso à técnica de spray, pinturas feitas de notas musicais. Na sala da escola de jazz do Convívio, quais sombras em perpétuo movimento, os signos interagem com os espectadores e os alunos. E há uma dimensão cenográfica nesse processo: o mural de signos é, ao mesmo tempo, um fundo e uma reativação do espaço. Interpela e afirma pertenças, usos, encontros. No CAR, a pintura dirige-se menos compulsivamente ao corpo do espectador, compondo um círculo de notas musicais. Serve também como cenário, mas é principalmente um símbolo da mediação, do debate e dos encontros que se realizam no espaço cultural. É afinal o círculo que dá forma às mesas redondas dos CAR e é à volta dele que a comunidade se constrói. Comunicação e comunidade são, pois, conceitos determinantes nas intervenções de Jorge Fernandes. Não por acaso, podemos entendê-las como extensões de uma só mesma pintura, que o artista imaginou e materializou durante a sua residência.

José Emílio Barbosa

O tema “música” regressa nas propostas de José Emílio Barbosa através da presença de dois desenhos em néon. No Convívio, somos recebidos pelas imagens luminosas de um saxofone e da palavra jazz. Podiam ser letreiros de um bar dançante ou de um outro qualquer espaço noturno. E com efeito eles evocam a vida cultural da cidade. Ao trazer da rua, estas formas vernáculas de comunicação, que associamos à publicidade, o artista sinaliza a ligação entre o Guimarães Jazz – nascido em 1992 – a escola de jazz da própria associação. Ou seja, salienta os laços que unem o Convívio à cidade. Mas não se limita a produzir sentidos no âmbito de uma prática e fruição culturais: ao desvelar os efeitos de luz (néon branco, néon vermelho) influencia a experiência do corredor e das salas contíguas, altera a perceção da arquitetura. O mesmo se verifica no CAR onde a luz pinta os traços de um piano. Neste caso, a relação é menos com o exterior do que com o dia-a-dia da associação: para chegar às aulas de música o espectador ou o aluno, atravessa o corredor e “tropeça” nas luzes. E esta situação, provocada pelo artista, desperta outras leituras: a relação da música popular com o escapismo, a eletricidade, a energia da vida moderna, com a promessa de uma sinestesia. Ou a presença da luz e a cor do néon (uma tecnologia arcaica, obsoleta, estranha à interatividade dominante) como um convite à contemplação e à meditação.

Marco Mendes

Marco Mendes é um autor de banda desenhada que trabalha frequentemente com o género da autobiografia. Fundou em 2004 com Miguel Carneiro o colectivo “A Mula” e tem mostrado a sua obra em fanzines, revistas e livros, como o belíssimo “Diário Rasgado” editado em 2012. Com este currículo, e se confiarmos nas fronteiras que ainda separam campos artísticos, a sua presença parece imprevista. Pelo contrário, faz todo o sentido. As narrativas de Marco Mendes são retratos de vivências inscritas no quotidiano. Espaços públicos, espaços privados, situações mais ou menos anedóticas, momentos de intimidade, personagens inspiradas no real constituem temas ou motivos recorrentes nas pranchas que compõem as suas histórias. A afinidade temática da banda desenhada de Marco Mendes com Memórias coletivas singulares está, pois, assegurada. Mas o que nos dizem em termos plásticos e formais, as intervenções do artista?

No Convívio, vemos uma enigmática sequência de planos/vinhetas. Objetos sobre uma mesa, roupas no chão, um rosto parcialmente fora de campo e, em contrapicado, a paisagem de uma fila de prédios. No CAR, deparamos com outra sequência de pranchas, menos misteriosa, que começa numa panorâmica da cidade e termina num plano de conjunto de uma banda musical em plena atuação. Um olhar mais distanciado e informado permite descrever e caracterizar com rigor o que vemos. São pinturas e simultaneamente bandas desenhadas. São bandas desenhadas porque se constroem como pranchas “silenciosas” em que cada vinheta é uma imagem do mesmo espaço-tempo (no Convívio) ou um instante de um movimento óptico que perscruta a cidade antes de se repousar num momento privado (no CAR). E são pinturas, se atendermos à plasticidade dos materiais (acrílico), à escala e, em particular, ao suporte que as apresenta, garantindo a sua permanência: as paredes.

Dimensão narrativa e plástica articulam-se permitindo ao espetador um envolvimento físico com a superfície das imagens pictóricas e aquilo que elas parecem representar: uma situação privada/intimada construída em elipses e foras de campo que termina num perspetiva do exterior; e um olhar comovido sobre a festa e a música que evoca diversas referências da história da pintura: pensamos em José Malhoa, Auguste Renoir ou Édouard Manet ou nalguma banda desenhada autobiográfica. E a autobiografia, sublinhe-se, não é de todo estranha ao processo desenvolvido por Marco Mendes. Mais do que o arquivo, foi uma vivência passada que o guiou. Daí também a pintura, com as suas sobreposições de cor, a sua materialidade, a suas “imperfeições”. O seu realismo bruxuleante. É o meio que evoca essa relação mundana, háptica, física, noturna com os lugares. Uma pele.

Liliana Carvalho

Todos os artistas deste projeto interrogam a definição de arte que Hannah Arendt propõe em “A Condição Humana”: isolada dos objetos de uso comum, sem estar sujeita ao uso, longe de materializar uma finalidade inerente. São, porventura, as propostas de Liliana Carvalho as que melhor personificam esse questionamento. Aliando a cenografia à instalação, a artista transformou um conjunto de objetos e de espaços do Convívio e do CAR não tanto para uma contemplação, mas para um usufruto profano, alheio a qualquer sacralidade ou aura. Aquilo que a sua prática artística deixou em Memória Individuais Coletivas serve, para ser usado, como servem, aliás, muitas peças de arte pública próximas do mobiliário urbano. Acontece que o produto do fazer de Liliana Carvalho não se materializa no espaço urbano, e sim no espaço semipúblico das associações. Ou seja, tem um conjunto delimitado de interlocutores.

No Convívio, a artista interveio no bar, recuperando material de arquivo e restaurando as mesas e outros objetos. A descoberta de postais, cartazes e posters alusivos à história da associação, motivou-a a criar e representar uma composição visual sobre as mesas. Assim, tornou presente a memória e a identidade do lugar, libertando-os do arquivo para uma superfície táctil, física, da vida de todos os dias. Mas este processo de rememoração não é linear, nem totalmente eficaz. A artista cobriu as mesas com tecido preto e este se nalguns casos deixa entrever as imagens, noutros esconde-as. Por fim, o próprio bar, com o mobiliário intervencionado, ganha a forma de um cenário no qual os visitantes, ou os frequentadores mais habituais, imaginam ou figuram ações de outro tempo.

No CAR, a artista prosseguiu o seu trabalho “cenográfico”, sempre com fins utilitários e cívicos, devolvendo uma das salas principais ao seu potencial público; recuperou parcialmente um piano, recriou um baú e mesas ortogonais – no passado, usadas para a realização de jogos – e pintou e forrou cadeiras. Nenhum destes objetos perdeu a sua antiga funcionalidade. As mesas, pintadas de azul, branco e vermelho (as cores do CAR) e cobertas de tecido, continuam a ser mesas. O baú continua a conter coisas (objetos do espólio). Mas o espaço transformou-se com a nova decoração/construção. Formada em cenografia, Liliana Carvalho cria ilusões, mas neste contexto, elas ganham uma dimensão concreta, real. Não as faz para atores ou dispositivos óticos, mas para pessoas e espaços realmente vividos.

Nuno Florêncio

As intervenções de Nuno Florêncio destacam-se por duas razões. Por um lado, não se reduzem a pinturas murais, por outro lado, evocam certas narrativas da história da arte e, sobretudo, da pintura. No hall de entrada do CAR, o trabalho consiste num desenho geométrico que representa várias caixas. A maioria não nos revela o seu interior, mas em algumas conseguimos vislumbrar imagens (documentais) das atividades da associação. Há uma impressão de movimento (sublinhada pelo pontos de fuga) e profundidade (pelas tonalidades do acrílico), que nos reenvia para certas tradições do modernismo. Podemos inclusive, sem corrermos o risco da sobreinterpretação, interpretar no desenho (de arquivos suspensos no ar), uma homenagem ao papel do coletivo no campo da produção cultural e no contexto específico da criação artística. Como se a história do associativismo se cruzasse com a história das vanguardas.

A intervenção no Convívio parte da apropriação de uma pintura de Adelino Ângelo existente no espaço. Datada de 1968, é exemplar do género clássico de arte (socorremo-nos da classificação de géneros artísticos de Nathalie Heinich), com as suas personagens e representações históricas/míticas, mas dela pouco resta findado o gesto de Nuno Florêncio. A cena, as personagens, o fundo, o óleo desapareceram para dar lugar a uma sobreposição de cores, superfícies, tons e sombras que criam silhuetas, projeções. E a sua localização na esplanada do café/bar é reveladora: este é um lugar encontros, de interação social, de desempenho de papéis. De vivências em cena, como as que Lourdes Castro evocava nas suas sombras projetadas. Um palco.

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